São várias as razões que tornam “Das Coisas que Surgem”, terceiro álbum de Marcia Castro, um trabalho de corte na carreira da cantora. E todas elas partem de um mesmo mote: o deslocamento. Nada está naquele lugar confortável em que costumava estar. Marcia desmontou a maneira como vinha fazendo sua música até aqui, reviu estéticas, repensou escolhas e acabou por encontrar um lugar muito denso e íntimo, que sua música ainda não havia acessado.
A história do disco começou em 2010. Já vivendo em São Paulo, Marcia procurava um produtor com quem pudesse trabalhar as canções que vinha reunindo. Pediu uma dica à jornalista Patrícia Palumbo, que lhe falou dos irmãos Amabis. “Talvez o Rica esteja muito ocupado. Sugiro que tente o irmão dele, Gui, que é genial.”
Cantora e produtor se encontraram por acaso, na plateia de um show de Karina Buhr. Marcaram uma conversa para os dias seguintes, que logo se desdobrou em música. Naquele período, fizeram três das 11 faixas que agora compõem “Das Coisas que Surgem”: “Na Menina dos meus Olhos” (Monsueto Menezes/ Flora Mattos), “Três da Madrugada” (Carlos Pinto/ Torquato Neto) e “Um Bom Filme” (Gui Amabis). Apenas essas. Pararam. Engavetaram o álbum. E só voltaram a trabalhar nele três anos depois.
O motivo prático da pausa foi esse: Marcia precisava entregar logo um disco, já tinha ensaiado um repertório ótimo que apresentava nos shows e ainda não havia sido registrado e quis fazê-lo antes de seguir adiante. Nasceu então o segundo álbum dela, “De Pés no Chão” (2012), com canções bem garimpadas nos baús de Rita Lee, Otto, Jorge Mautner, Novos Baianos e outros compositores brasileiros, além de algumas faixas inéditas – exatamente como havia acontecido em “Pecadinho” (2007), seu trabalho de estreia.
Mas houve outra razão, mais profunda, para o intervalo de três anos que separa a primeira e a segunda fase de criação de “Das Coisas que Surgem”. Em 2010, Marcia ainda não estava pronta para caminhar com segurança pela linguagem intimista proposta por Amabis. Desde o começo da carreira, a cantora melhor se resolvera emoldurada por uma estética “para fora”, em que a mensagem, quase sempre rica em ironia, era discursiva, vinha através do texto.
Amabis deslocou esse discurso para a forma. Até mais do que as palavras, são os sons e os silêncios que constroem a carga dramática do novo álbum. E isso só foi possível porque, em 2013, com a relação entre cantora e produtor amadurecida, Marcia pôde se entender naquele novo universo. E com clareza tanta que foi capaz de se colocar (e de se expor) como nunca havia feito antes, ao ponto de escrever ela mesma quase metade do repertório do disco.
As cinco canções assinadas por Marcia Castro em “Das Coisas que Surgem” têm letras do poeta Arruda – conhecido por parcerias com artistas como Alzira Espíndola e Gustavo Galo, entre outros. O processo de criação dos dois partiu sempre de conversas casuais. Arruda tinha o hábito de me mandar e-mails depois dos encontros. Eram e-mails-poemas, com métrica musical bem delineada. Na maior parte das vezes, Marcia trabalhou sobre essas mensagens.
O primeiro desses e-mails a ganhar música foi “O Amor Tem Dessas”. Tudo começou depois de uma conversa sobre um tema tão banal quanto inevitável: o amor – que, aliás, permeia quase todo o disco. O que nasceu para se tornar um ijexá acabou se transformando, depois das interferências de Amabis, em um gênero híbrido, que concilia bolero e dub, arrocha e jazz.
Também foi assim que aconteceu com “Beijos de Ar”, expressão de despedida que Arruda sempre usava nas trocas de e-mails. Depois de musicar um desses e-mails, juntar com outro que parecia continuação do mesmo assunto, estava pronta a primeira parte da música. O resto surgiu depois, a partir de conversas complementares. Gui Amabis construiu um arranjo com samples de cordas que traz a dimensão de uma grande saudade, tema da canção.
“O que me Move” também surgiu das mensagens de Arruda. Marcia criou uma pasta onde guardava os diálogos virtuais com o parceiro e encontrou por lá esse poema. A ideia de que “o que nos move é o que nos falta” incendiou a imaginação da cantora. Ela decidiu defender a teoria que algo que nos falta pode ser motor para uma transformação. “Falta” pode ser mais vida do que morte.
“Atalhos” e “Sem Mistério” vieram de outra maneira. Marcia criou tudo junto: melodia, harmonia e letras. Arruda acrescentou versos nas partes C de cada uma delas.
“Atalhos” foi a primeira composição de Marcia para o disco e partiu da palavra “intensidade” estampada em uma almofada. É, segundo a autora, uma letra de amor intenso feita para um amor intenso – e ao mesmo tempo com a leveza necessária para ser gostoso. Amabis deu um toque de reggae à gravação.
“Sem Mistério”, Marcia afirma, trata da necessidade de sermos completamente diferentes do outro para que a vida a dois tenha uma dinâmica cheia de variações, de novidades, fugindo da monotonia assassina. Para a compositora, a maioria das pessoas busca os iguais por uma dificuldade imensa de se relacionar com tudo que pareça diferente do nosso micromundo. Ela quer fugir dessa lógica vigente e diz que só pode entender o mundo e fazer arte por tudo que é diferente do seu universo. No mais, é fim da espécie. Para tratar do tema, Amabis preparou um arranjo roqueiro e mais pesado.
O próprio Gui Amabis compôs três canções para o disco. “Um Bom Filme” inaugurou a série, ainda na primeira fase de produção, em 2010. A bateria dela foi na verdade pensada para uma outra canção, que acabou sendo descartada. Não queriam perder tudo que haviam gravado e decidiram experimentá-la como base dessa música. Encaixou perfeitamente. Convidaram Jaques Morelenbaum para gravar o cello. Marcia conta que essa é a música mais autobiográfica do disco, que revela esse novo momento, esse espaço que ela permitiu e criou para que outros universos sonoros fossem incorporados a sua própria música, com toda paz, tranquilidade, intensidade e riscos que esses momentos de mudanças sugerem.
“Esculacho”, também de Amabis, arrebatou a intérprete logo na primeira audição. Para ela, os versos simples e certeiros chegam fundo nos sentimentos de desencontro e separação. A música, que já funcionava com acompanhamento simples de violão, seguiu por esse caminho enxuto, com poucos elementos soando, assegurando assim que a força daquelas palavras não se perdesse.
Parceria de Amabis com Lucas Santtana, “Partículas de Amor” foi escrita especialmente para esse disco. O arranjo evidencia a natureza solar dos versos, com um papel preponderante da guitarra de Juninho Costa no swing da base, revelando a música mais baiana de “Das Coisas que Surgem”. Fã do trabalho de Lucas, Marcia pôde ter no álbum alguém que, como ela, apresentasse outro viés da Bahia musical contemporânea, tão diferente dos clichês de mercado.
“Mau Caminho” tem música de Arnaldo Antunes e letra de Alice Ruiz. Marcia queria a presença dessa dupla do novo trabalho – sobretudo pelo universo urbano e concreto tão característico da obra do ex-titã, já que também era esse o caminho que se apontava para o disco que ela própria estava construindo.
Também aprontadas em 2010, “Três da Madrugada” e “Na Menina dos meus Olhos” são as outras duas canções não autorais do álbum. A primeira é um poema de Torquato Neto que ganhou música de Carlos Pinto e foi lançado por Gal Costa em um compacto de 1973, encartado no clássico livro “Os Últimos Dias de Paupéria”. A solidão que transborda do poema era então vivenciada por Marcia Castro em seus tempos iniciais de São Paulo, cidade para onde ela havia se mudado dois anos antes e na qual vive até hoje.
Primeira faixa produzida para “Das Coisas que Surgem”, “Na Menina dos meus Olhos” foi também o single que apresentou o álbum ao mundo, assim que foi disponibilizado para download gratuito no site do Natura Musical. Trata-se de uma música do carioca Monsueto Menezes (1924 – 1973) com versos acrescentados pela brasiliense Flora Matos. A faixa se transformou em um ska e ganhou participação vocal da cantora cabo-verdiana Mayra Andrade.
Parece evidente, “Das Coisas que Surgem” é fruto não só de um processo de amadurecimento, mas também de mergulhos profundos no passado. Marcia abriu de novo uma porta que estava fechada desde seu primeiro show, quando tinha 18 anos. Ainda morava na Bahia e tinha coragem de mostrar em cena as canções que escrevia. Aquelas nunca foram gravadas e seguem como inéditas, por ora. Talvez se juntem às ainda mais novas que, agora, não param de entrar pela porta recém- aberta. É isso. Quebrou, não tem mais jeito.