É a dessemelhança que mantém a Bahia viva, onipresente, e refratária aos rótulos e algemas do mercado. Márcia Castro é uma baiana verdadeira, porque dessemelhante e ao mesmo tempo uma artista planetária, descolada de sua província. “De pés no chão” como assegura o título de seu segundo disco, mas viajante. “A Bahia da minha música não se dá necessariamente num ritmo, numa levada, mas num jeito de entender, de compor, de arranjar, de andar. Essa é a Bahia que carrego”, distingue. Além disso, sua pegada como intérprete é autoral, de quem sabe o que diz e canta o que pensa. É guiada pelo GPS da intuição à flor da pele que habita, sensual e articulada. O parto do novo disco como convém a uma artista visceral foi no palco, enquanto fechava a tampa do repertório anterior e já ensaiava este, fruto de um encontro não apenas musical “mas de vida” com os músicos que gravaram o CD. “Todos doaram um pouco de si, se misturaram para construir algo que não seria exatamente o meu som, mas o som daquele grupo enquanto mesmo corpo, capitaneado pelo meu posicionamento musical e conceitual, que foi muito bem acolhido”, define Márcia. Ela contou com “um arsenal imenso de som”, já que os músicos tocam vários instrumentos. Guilherme Kastrup tripula bateria, percussão e MPC (uma espécie de armazenador e disparador de samples), Rovilson Pascoal, diretor musical, guitarra, violão, cavado, lapsteel; Ricardo Prado vai de teclados, acordeon, violão e baixo, instrumento de Fernando Nunes e Sidmar Vieira sopra flugelhorn e trumpete, usando eventualmente uma pedaleira de efeitos. É uma orquestra de timbres & texturas que se move por um repertório de raro frescor, surpreendente a cada escolha e tratamento musical. A estréia do grupo e de algumas musicas ocorreu ainda no Montreux Jazz Festival de 2010, na Suíça.
“É muito diferente cantar uma canção sendo maturada e uma canção já deglutida”, separa Márcia, cuja memorabilia musical pulsa na década de 70, de onde provém a maioria das composições do disco. “Adoro essa fase da música brasileira, do mundo. São desse período os artistas brasileiros que mais admiro”. Por exemplo, a Rita Lee de “Atrás do porto tem uma cidade” (1974), que forneceu a faixa título. “A letra é cheia de ironia e subtextos, desafiando levemente a moral e o comportamento comum”, define Márcia. Indicada ao Prêmio Tim na categoria “melhor cantora pop rock”, ela ficou intrigada com o rótulo. E o rebate no disco, numa releitura potente da obscura “Crazy pop rock”, parceria de Gilberto Gil e Jorge Mautner, gravada pelo baiano em seu disco de exílio, na Inglaterra, em 1971. Ainda mais recôndita, praticamente inédita, é “Catedral do inferno”, de Cartola e Hermínio Bello de Carvalho. Seus versos sucintos e virulentos, foram registrados apenas pela cantora Marlene no disco de seu show “Te pego pela palavra” (1974). A música é cerzida pelo violão experimentalista de Kiko Dinucci, da nova geração musical de São Paulo.
Márcia _ cronologicamente, uma baianovíssima _ reverencia os antecessores Novos Baianos em dois momentos. “29 beijos” (Moraes/Galvão), faixa de um compacto da fase roqueira do grupo, de 1971, recriado por ela num híbrido de samba e tango. E o megaclássico “Preta pretinha”, atravessado por espirais de trumpete, da mesma dupla autoral, e já incrustado no disco da virada do grupo, “Acabou chorare” (1972). Ele vem associado ao samba duro “Gererê”, do grupo Terra Samba. “Essa música foi marcante na minha adolescência e há um casamento interessante entre as duas letras: ‘eu vou me embora devagar, devagarinho…enquanto eu corria”, contrasta Marcia, que convocou o fabuloso maestro baiano Letieres Leite (Orquestra Rumpilezz) para o arranjo de sopros. Dilatando latitudes, há uma rara parceria do tropicalista conterrâneo Tom Zé (“um dos compositores da música brasileira com o qual mais me identifico”) e o gaúcho Hermes de Aquino, “Você gosta”, gravada em 1969, no disco “Por favor, sucesso”, do grupo de rock Liverpool, também dos pampas. “Convidei as amigas cantoras Andréia Dias, Alzira E, Elaine Guimarães, Jurema Paes, Marcela Bellas para participar com risos e gemidos nessa música de sensualidade lúdica e um subtexto erótico provocado por trocadilhos inocentes”, descreve. Mais “antiga” (põe aspas nisso) do repertório, “Nó molhado” foi lançada pelo próprio autor, Monsueto Menezes (em parceria com José Batista) em 1962. Sensibilizou Márcia, que “vinha vasculhando a obra” deste sambista dissonante da Praia do Pinto (onde hoje é a Selva de Pedra, no Leblon, no Rio). Ela comoveu-se com a metáfora do “nó molhado”, algo impossível de desatar. “Sinto o amor desse jeito”, desabafa. Tanto assim, que ela também embarcou de corpo e alma na “História de fogo”, do pernambucano Otto (com Alessandra Negrini), da geração mangue bit. “Gosto quando o amor vem recheado de drama e eroticidade”, decupa. Ela canta este reggae dissonante embalada por guitarra, acordeon e trumpete.
Outro contemporâneo, o paulista Kleber Albuquerque, fornece a reflexiva “Logradouro” (“Em Salvador, Sumaré, Xangri-lá/ em cada curva dessa esfera/na esquina de qualquer lugar”), envolto em cordas épicas (oito violinos, quatro violas, , dois cellos) do arranjo de Luiz Brasil. Inédita do disco, “Vergonha” (Luciano Salvador Bahia) com seu sabor de guarânia/bolero de beira de estrada, desconcerta pela letra frontal, ao mesmo tempo brega e “cool”. Só uma cantora saudavelmente despudorada seria capaz de atravessar esse arco de fogo tragicômico sem chamuscar-se. E ainda repescar um compositor tão regravado como Gonzaguinha, extraindo de sua obra um petardo de protesto, a que fornece novo contexto. Escrito em pleno confronto com a ditadura militar, em 1973, o encaniçado samba “Pois é, seu Zé”, na época, acicatava a passividade da então maioria silenciosa ante as arbitrariedades. Hoje, pode ser (re)lido como “retrato do comportamento de grande parte do público, alienado da condição do artista no seu ofício de fazer arte, como se este fosse uma juke box a serviço do entretenimento”. E também, no reverso, da própria cultura, “que só deseja ser feliz” e se desvirtua para atender as demandas do mercado. Conceitual mas visceral, intuitiva e sagaz, brilhante e reflexiva, a arte de Márcia Castro pede entrega e interação. Não é bibelô de vitrine. Faz parte da vida. Dela e nossa.
(Tárik de Souza)